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terça-feira, 16 de novembro de 2010

João Mário não esquece a forma como foi “saneado” da presidência da câmara

A única mágoa que João Mário Ayres d’Oliveira guarda da sua passagem pela presidência da Câmara de Alenquer, entre 1967 e 1974, é a forma como foi afastado das funções no período revolucionário que se seguiu ao “25 de Abril”. Aos 77 anos, aquele que é um dos maiores pintores figurativos portugueses, assume, em declarações ao Nova Verdade, que ainda hoje se revê “totalmente” no antigo regime e diz que não está “nada arrependido” de tudo aquilo que fez, “porque foi tudo por Alenquer, foi tudo na convicção de que estava fazendo aquilo que melhor servia a minha terra”.
João Mário, nome pelo qual se tornou conhecido através da pintura, foi eleito vereador municipal em 1963, sob a presidência de D. Nuno Pedro Francisco José de Siqueira. Quatro anos depois é nomeado presidente do município, sendo empossado a 21 de Abril, apesar de assegurar que nunca pertenceu ao partido único, a Acção Nacional Popular, que suportava o Estado Novo. “Não havia eleições para o cargo, era por nomeação, e indicaram o meu nome, até, sem eu saber e sem me convidarem; acabei por entrar e – se calhar isto choca as pessoas… – tive sorte, já que por força das grandes cheias que nesse ano devastaram a sede de concelho, e não por mérito meu, Alenquer recebeu muito dinheiro”, lembra o antigo edil alenquerense.
Tornando-se rapidamente numa espécie de “benjamim” do regime, pelo facto de ser então o presidente da câmara mais novo do País, João Mário viu o orçamento municipal bastante reforçado, o que lhe permitiu fazer, e deixar, obra. “Quando eu entrei o orçamento anual da câmara era de 3 000 contos e quando tive de sair, a 25 de Abril de 1974, era de 12 000 contos. Portando, como me vi com algum dinheiro, fiz bairros para os desalojados das inundações – o bairro do Castelo e o bairro da Gulbenkian -, alcatroei as ruas todas de Alenquer, comecei com uma grande campanha de electrificação do concelho e aproveitei ainda para alindar a vila com candeeiros tradicionais e iluminação dos seus monumentos”, recorda o antigo edil, acrescentando que, nos sete anos em que esteve no cargo, teve “a sorte de nunca ter sido visitado por nenhum inspector da PIDE, de não me terem sido perguntadas informações deste ou daquele outro, porque se tivesse aparecido, claro que eu teria que o fazer”.
Quando estão prestes a ser assinalados 36 anos sobre a designada “Revolução dos Cravos”, João Mário confessa que não foi o 25 de Abril que o assustou, mas sim o 26 de Abril. “Adivinhava-se que, mais cedo ou mais tarde, poderia haver um golpe de Estado, porque o regime que vigorava em Portugal não era bem visto lá fora. Depois, tive alguns dissabores, mas são os dissabores normais e decorrentes da revolução. A minha grande mágoa é de ter sido o único presidente de câmara, pelo menos no distrito de Lisboa, que antes do despacho genérico de exoneração, que saiu no Diário do Governo, já eu não estava na câmara, porque não me deixavam. Foi quando entrou uma comissão administrativa presidida por aquele rapaz de Olhalvo de que não me lembro o nome [n.d.r. Francisco Vasques Ferreira] e que já integrava o Álvaro Pedro, de quem eu tive sempre a melhor impressão, foi muito simpático para mim”, revive o presidente da câmara deposto, afirmando-se “convencidíssimo que com o Marcelo Caetano, com quem me dava bem, o regime teria passado pacificamente para a aquilo que é hoje, mas não o deixaram”.
Afastado de uma carreira na política, para a qual assume que nunca se sentiu verdadeiramente vocacionado, João Mário revela que já durante os últimos 36 anos de regime democrático chegou a ser sondado,  por uma força política concelhia, para ser candidato à principal cadeira dos Paços do Concelho, mas que não aceitou “porque não me sentia bem a servir o meu concelho num regime de faz e desfaz”. “Nunca mais voltei a ter interesse na política, mas isso não impede que eu colabore com os responsáveis municipais, na vertente cultural, aliás, já manifestei a minha disponibilidade ao novo presidente, Jorge Riso, como já o tinha feito antes junto do vereador Luís Rema”, adianta aquele que é hoje um pintor consagrado internacionalmente, garantindo que não está “nada, mas absolutamente nada, arrependido de tudo aquilo que fiz, porque foi tudo por Alenquer e na convicção de que estava fazendo aquilo que de melhor servia a minha terra”.
Apaixonado verdadeiramente pela sua terra, que só não o viu nascer porque a mãe foi a Lisboa dá-lo à luz, João Mário não poupa críticas a algumas decisões políticas dos últimos 36 anos, na área do urbanismo, que, na sua opinião, contribuíram para estragar a imagem de beleza da sede de concelho, nomeadamente com a aprovação da urbanização da Quinta do Brandão, mas não só. “Já houve alguém que me acusou, por causa de pensar assim, de ser contra o progresso, dizendo-me que então nesse caso em Lisboa não existia o Areeiro; não, mas aqui [a urbanização do Brandão] é o Areeiro em Alfama. Tudo tem o seu lugar, não me choca uma Alenquer nova, mas não aqui dentro. Acho que Alenquer tem que ser apreciada pela beleza, pelo encanto, por esta cascata de alvor das casas que vêm pela encosta abaixo, até ao rio. Os projectos do Palácio da Justiça e do novo Centro de Saúde de Alenquer, ou o edifício da Caixa Geral de Depósitos, por exemplo, foram feitos por arquitectos que nunca vieram a Alenquer. Isto faz-me uma pena enorme, porque isto estraga Alenquer”, conclui o pintor alenquerense, sustentando que não vê mais que dez vilas com as mesmas características em Portugal e que lhe faz “pena que isto não seja avaliado por nós, pois sinto que Alenquer é uma terra ímpar, até para os pintores”.  
60 anos de carreira artística

João Mário nasceu em Lisboa, em 1932, passando desde logo a residir em Alenquer, onde tem atelier. Desde muito cedo começou a sentir a vocação pelas artes plásticas e por volta de 1950 resolve dedicar-se exclusivamente à pintura a óleo, tendo passado a frequentar os cursos de pintura e desenho da Sociedade Nacional de Belas Artes, sob a orientação dos mestres Albertino Guimarães e Domingos Rebelo. Terminado este curso, passou a receber lições de pintura, ao “ar livre”, do notável mestre Álvaro Duarte d’Almeida. Em 1954 expôs, pela primeira vez, em Lisboa, num salão colectivo, tendo todos os seus quadros sido adquiridos por um importante coleccionador inglês.
Estimulado por isso, passa a expor anualmente no mesmo salão de belas Artes e em 1958 é premiado pelo júri, prémio que lhe é entregue pelo Presidente da República. Em 1979 é distinguido na Exposição da Escola Ferreira Borges, de Lisboa, com o 1º prémio de pintura da Secretaria de Estado da Cultura. Em 1960 obtém o 1º prémio em pintura a óleo no salão de Motivos Ribatejanos e em 1966 é distinguido com a Medalha de Honra, em ouro. Em 1981 é laureado com o prémio de honra Prof. Reinaldo dos Santos e em 1985 recebe o prémio de Ouro de Rosa Mendes.
Em 1992 inaugura o seu Museu em Alenquer, apresentando cerca de 500 obras dos mais consagrados artistas nacionais e estrangeiros. Em 1993 é-lhe conferida pela Câmara de Alenquer a Medalha de Mérito (grau ouro). Por proposta da Junta de Freguesia de Santo Estêvão, em 1996 o seu nome é atribuído a uma rua de Casais Novos.
Em 2001 a Sociedade Nacional de Belas Artes atribui-lhe a Medalha de Prata e a Associação Centro Histórico de Florença (Itália) confere-lhe o Óscar Della Cultura e em 2005 volta  a ser distinguido com a Medalha de Mérito Cultural da Academia de Letras de Paranaguã, Rio de Janeiro, Brasil.
Em 2009 realiza um protocolo com a Câmara de Alenquer passando a administração do Museu para a responsabilidade da autarquia.
Assumindo-se como “pintor figurativo de tendência impressionista”, até Dezembro de 2009 realizou 58 exposições individuais, 166 colectivas, e é detentor de 34 prémios. As suas obras integram dezenas de colecções particulares nacionais e estrangeiras.
 
Artigo publicado no "Nova Verdade", edição de 01ABR2010

1 comentário:

  1. Peça muito interessante. É pena divulgar-se tão pouco desta época do regime no nosso concelho.

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