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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

«Espírito do presépio perdeu-se»


João Mário foi o grande impulsionador do Presépio
 A montagem do maior presépio decorativo do País, na encosta da colina que suporta o centro histórico de Alenquer, na quadra de Natal, é uma tradição que leva 42 anos, mas, a julgar pelo desapontamento nas palavras do pintor João Mário Aires D’Oliveira, que então era presidente da câmara local e foi um dos principais impulsionadores da iniciativa, até parece que se trata de um uso mais remoto. “Custa dizê-lo, mas o espírito original do presépio de Alenquer, na sequência das trágicas cheias de 1967, que fizeram 54 mortos em Alenquer, há muito que se perdeu”, afirma o conceituado pintor.
João Mário, como é conhecido internacionalmente pela sua obra, recorda com saudade, até com alguma emoção, os acontecimentos que se sucederam à terrível madrugada de 26 de Novembro de 1967, quando, “unidos pela tragédia, os alenquerenses, num clima muito especial e até hoje irrepetível”, exultou com o presépio erguido na encosta da Vila Alta, que depressa granjeou para Alenquer com o epíteto de Vila Presépio. “Eu tenho 77 anos e nunca vi em Alenquer um período de oito, tão bonito, como foi o que se viveu depois das grandes cheias que arrasaram a parte baixa da vila, porque gerou-se um ambiente de solidariedade, de amor e de amizade entre as pessoas”, relembra o pintor.

Era um clima tão especial que, “ali ao pé do Joaquim Barbeiro, na escadinha, havia dois vizinhos que viviam por cima um do outro e estavam de relações cortadas, nem se falavam, e o indivíduo que vivia no primeiro andar, quando viu o risco que corria o seu vizinho do rés-do-chão, fez um buraco no soalho para o puxar para cima”, enfatiza João Mário.  Ao nível da autarquia a solidariedade também era palavra de ordem e, “por iniciativa da então vereadora Dr.ª Maria Patrocínio de Matos Coelho e de outras pessoas, a Câmara Municipal mandou fazer filhozes para distribuir, em pratinhos, porta-a-porta, e é claro que houve logo quem oferecesse os ingredientes para os doces”, refere o antigo autarca.
Foi neste quadro que, no ano seguinte, “o então vereador D. José Francisco Xavier de Siqueira lembrou-se de perpetuarmos de alguma forma, através de um monumento ou de uma lápide, o espírito de unidade e de amor que foram vividos na vila, tendo surgido depois, em sessão de câmara, a ideia de se organizar um presépio”, recorda João Mário que, enquanto presidente da câmara, confessa ter-se entusiasmado desde logo com a proposta. Por isso, decidiu dotar Alenquer com um presépio gigante, no âmbito das benfeitorias levadas a cabo na vila, tendo encarregue da sua concepção e execução mestre Álvaro Duarte de Almeida, seu antigo professor.
Concebido ao gosto dos presépios tradicionais portugueses, o presépio de Alenquer engloba mais de duas dezenas de peças representativas das figuras bíblicas, desde o Menino, Maria, José e Reis Magos, até aos pastorinhos, devidamente orientados por dois anjos da guarda, constituindo hoje um ex-libris da vila, em tempo de Natal.
Esta é a segunda versão do presépio de figuras monumentais, as maiores com cerca de seis metros e a mais pequena atingindo quase metro e meio de altura, já que a acção do tempo foi implacável para com aquele trabalho artístico, originalmente executado em madeira, que, segundo o seu autor, baseou-se “na figuração da pintura portuguesa dos séculos XVI e XVII”. As peças que hoje podem ser observadas já não são as originais: há nove anos a autarquia mandou substituir as peças originais por novas figuras metálicas, com o argumento de que estas são mais resistentes ao vento e à chuva, tendo o trabalho sido realizado nos ateliers de Torres Vedras que normalmente executam os bonecos para os corsos carnavalescos. “Penso que se perdeu um bocadinho aquele cunho artístico da obra, com a pintura à pistola. O trabalho poderia ter sido pintado à mão, teria certamente um cunho mais pessoal e tinham-se descaracterizado menos as peças anteriores”, acentua João Mário que revela não ter sido consultado pelos responsáveis camarários, com tristeza sua, quanto à renovação das figuras do presépio.
Quarenta e dois anos depois deste presépio, único em Portugal, ter sido montado pela primeira vez na principal encosta da vila, resta a tradição e o epíteto feliz de “Vila Presépio” que Alenquer, em boa hora, conquistou. O espírito que esteve por trás da iniciativa, num dos momentos mais dramáticos vividos pela população da sede de concelho, esse “perdeu-se há muito, infelizmente, entre os alenquerenses, existindo várias razões de fundo que justificam tal facto, com destaque para as divisões suscitadas após o 25 de Abril, muito por culpa da luta político-partidária”, lamenta João Mário.

Artigo publicado no "Nova Verdade", edição de 15DEZ2004 (ACTUALIZADO)

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